sábado, 5 de outubro de 2013

Notas de Leitura VI: Sobre a poesia de Alberto Soares


Verbo enxuto, sem mais ornamentos do que o eco do seu próprio dizer, a poesia de Alberto Soares, enquanto derradeiro olhar sobre o íntimo, revela-nos um singular itinerário de Sísifo visto do sopé da montanha de viver.

Escrito para a Noite (1984) e Equilíbrio (1988) são etapas antes reveladas desse percurso que, Arquivo Mortal mostra, agora, como se iniciou.

Publicado em 2013, por iniciativa do poeta António de Almeida Mattos, com design de Mariana de Almeida Mattos e fotografias de Miguel Soares, Arquivo Mortal, que “acabou de se escrever em 9 de Julho de 1971”, é, na sua concepção e concretização material, a surpresa que veio depois, num belo desenho de afectos, com o selo maior da amizade. Os poemas que o integram recortam-se nítidos no verão da vida e apuram-se num ódio instintivo à realidade mansa e cínica que, em Portugal, então corria no vazio de nada acontecer.


Por isso, os poemas de Arquivo Mortal são como que pretextos para abrir essa caixa de silêncios em que a pátria se tornara, redescobrindo a verdade na outra face das pessoas e das coisas, rompendo o tecido baço das suas convenções e das suas efígies, pretextos para emprestar à razão meditadora a voz da poesia, soltando-a no meio da realidade e deixar que o verbo viril e soalheiro transformasse a raiva em anúncio de futuro. Dir-se-ia uma serena provocação, um rasto de ódio iconoclasta, um acto de desespero sublimado perante o véu de quieta falsidade e de velhacos costumes que cobria tudo. Era o triunfo de celebrar, em transgressão, a beleza limpa na pele macia de um limão, ou o desejo óbvio no contorno nu de um corpo de mulher. Mas era, também, descobrir o lado “cruel e luminoso”, o detonador do ódio, “a vez primeira” em que o mal adquiriu a forma inequívoca de um rosto e a vida vivida se cruzou com a História nos corredores do erro, resgatando da face esfíngica do passado a palavra viva que o preconceito e o tempo rasuraram:

Meditação íntima do Infante D. Fernando sobre Ceuta e a sua vida

“De honra e fé atapetaram
os verdugos meus passos. As razões
de estado me pedem santidade;
a burocracia espera apenas a data
para me erguer altar.
A tudo assisto
com ironia e distância enquanto
minha vida lentamente passa.

Que Deus me dê paciência e raios
levem esta maldita praça!”
Arquivo Mortal, 2013

É a persistência da palavra contra o vazio, num tempo em que a luz e a sombra se confundiam e podiam conter, ao mesmo tempo, a indignação, o tédio, ou a alegria de uma silhueta desejada, entrevista em contraluz; um tempo em que o vazio era também espaço livre, clandestino, câmara escura onde se podiam revelar intensos e densos, sobreexpostos, os contornos de uma outra realidade. Não, não era fácil, mas era possível, pois como mostram as fotografias de Miguel Soares, na sua arquitectura de negro, de luz e de silêncio, a plenitude e a beleza também podem estar na dobra fugaz de um instante.

Densidade, silêncio e luz, o quase indizível que fica preso ao voo dos pássaros e à madrugada dos corpos é, porventura, o que mais nitidamente se prolonga em Escrito para a Noite e em Equilíbrio, enquanto marcas de uma poesia em que a veemência do dizer compreende uma espécie de sabedoria da paz, achada nos recantos das pendências de existir, como se entender o verso fosse entender a vida: olhar de frente a luz que dói e descobrir que daquilo que se vê o que verdadeiramente importa é o instante, esse momentâneo eco de luz e não as excrescências, que a luz deliberadamente apagou e que são, ao contrário da poesia; apenas o proprium de um saber politécnico:

Tela        
              
“É pelo branco todo que procuro
Uma raiz de sol por onde arda.”

Escrito para a Noite, 1984

Coando das palavras o que nelas fica da ciência de viver, os poemas de Alberto Soares configuram, deste modo, como que os limites da palavra, aquilo que não pode ser dito de outra maneira e que fica logo atrás do precipício do silêncio; como se a faculdade da poesia fosse um sentido entretanto perdido que tivéssemos de reencontrar, como se entender um verso, entender um poema, fosse, afinal, interpretar um léxico em estado de expectativa, de que a razão comum é tão só a mera gramática que transforma a rota desse olhar sobre o íntimo, na evidência de um fragmento de sabedoria:

Lição de ser       

“Não há paixão nenhuma que se aprenda
amor que nos distraia ou verde
que não venha da infância
ofendido ao longe pelo som dos passos.”

Equilíbrio, 1988

Falamos de uma poesia de linhagem antiga, em que a mestria do poema curto se alcança pela progressiva tensão do dizer, que se vai afeiçoando nas costuras do pensamento, num processo contínuo de feliz despojamento, em que a indignação dispensa a vulgaridade de afirmar-se, o amor se contém nas fronteiras da dúvida e a vontade se faz pedra e matéria nobre do verso, esclarecendo na sua diversa morfologia, o ofício do poeta, esse último artesanato que se aprende mas não se ensina:

Criação     
                                         
“Esta dura crueza de navio
à deriva, seguindo a tempestade,
aguarda essa palavra que inicia
todo um começo sem saber o fim.

Dum silêncio nocturno vem a lume
a força, e um caroço se liberta
de mim, como de um fruto que apodrece
sem saber – por dentro.”

 [Inédito]

Mas, tudo isso implica conhecer e aceitar a face intermitente da poesia, as suas ausências e os seus inesperados regressos: entre a secura e a surpresa, deixar o verso saltar, quase limpo, do meio de coisa nenhuma, reclamando a excepção do poema e impondo a raiz da sua autenticidade contra a mentira dos dias. Inutilmente dirão alguns, como se o ferro da verdade não queimasse!

Post de HN
                              
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

16 comentários:

  1. cá está o poeta! afinal há escritos publicados este ano, vamos ver se encontro ... gostei dos poemas partilhados no post e do resto que tenho lido...Venham mais!

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    1. Este último livro, Teresa, não teve circuito comercial, por razões várias. A tiragem foi apenas de 20 exemplares. Mas nada garante que não vão aparecendo, se oportunos, mais alguns poemas no Arpose.

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  2. Tentei comprar "Equilíbrio" e "Escrito para a noite", quando me apercebi que APS tinha livros publicados, porque gostei da poesia. Procurei na Bertrand e no site Wook (onde habitualmente compro livros), mas nem num lado nem no outro consegui comprá-los.
    Vou ver se consigo encontrar "Arquivo Mortal" ( ou não está à venda?...)
    Gostei dos poemas aqui publicados.
    Boa tarde!

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    1. Dos três livros, creio que o primeiro ("Escrito para a Noite") será fácil encontrá-lo, ou pedi-lo, numa das lojas da Imprensa Nacional. Quanto aos outros dois, Isabel, será mais difícil... O "Arquivo Mortal", porque não está à venda, o segundo porque a Ed. Caminho já só o deve ter em depósito.

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  3. Também já tentei encontrar um título seu, sem o conseguir, por isso agradeço-lhe as indicações que aqui deixa.
    Um bom domingo!

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  4. Muito obrigado, Maria.
    Um bom domingo soalheiro!

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  5. Parabéns a H.N. pelo texto e ao poeta que foi objeto desta crítica.

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  6. Duplo agradecimento, MR, o primeiro por "procuração": H. N. toca sempre de grande qualidade a prosa magnífica que pratica...

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  7. Belos poemas! Espero, um dia, poder comprar, pelo menos, um dos seus livros. Desta vez, só tive tempo de dar um pulo à Bertrand. A ver se, na próxima, consigo um tempinho para passar na Imprensa Nacional.

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  8. Nada melhor que um bom poeta para provocar um bom crítico. Mas onde está a novidade?

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  9. Saúdo o regresso!
    Talvez...
    A novidade e mérito estão no trabalho do intérprete.

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  10. Gostei muito de tudo, e sobretudo do poema «tela». Parabéns!

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